O CRP-RJ esteve presente, no dia 18 de junho, no SEMINÁRIO ACADÊMICO – Ciência, Política e Religião: “Cura Gay” em Debate, sendo representado pelo conselheiro Alexandre Nabor França e pelas psicólogas Maiara Fafini, colaboradora no Eixo de Diversidade Sexual e de Gênero, e Cristiana Serra, colaboradora no Eixo Laicidade, ambos ligados à Comissão Regional de Direitos Humanos do CRP-RJ.
O evento foi uma iniciativa do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ), e contou com duas mesas de debates: na parte da manhã, “A controvérsia em Debate: Diferentes Campos de Atuação”, e na parte da tarde, “A controvérsia em Debate: Comunidades de Fé”.
Inicialmente, foi lembrado aos presentes que um dos objetivos do CLAM é a redução da desigualdade e da discriminação e que, por esse motivo, é tão importante analisar como se deu a retirada da homossexualidade do CID na década de 1990, e as tentativas mais recentes de implementar “terapias de reorientação sexual”, a chamada “cura gay”.
A primeira mesa foi iniciada com o posicionamento da Antropologia sobre o tema. Em 2013 e 2017, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) se posicionou contra a “cura gay” e, em 2015, contra o Estatuto da Família e contra a supressão do debate de gênero dos currículos escolares. Foi feito um interessante paralelo entre a Criatura e seu Criador, nos moldes do romance/terror Frankenstein (de Mary Shelley, 1831), e a forma como um tipo de concepção científica foi capturando a vida e criando uma patologização, uma monstrificação, como condição anômala e como psicopatia, mais do que como doença, ou seja, mais teratologização do que patologização.
A metáfora do Pinel retirando as pessoas da prisão e levando ao hospício se aplica também à homossexualidade no final do século XIX e início do século XX. E é apenas da década de 60 do século passado em que a Criatura se volta contra o Criador, momento em que o movimento LGBT se rebela contra essa ciência abusiva, forçando, assim, a saída da homossexualidade da APA em 1972/73 e do CID em 1990. No Brasil, em 1985, também por pressão dos movimentos sociais e com apoio de antropólogos e da própria medicina, a homossexualidade é retirada da lista de doenças do INAMPS. Sai a homossexualidade, mas fica a transexualidade, já que, na época, era considerado tudo a mesma coisa.
Do ponto de vista da Psicologia, o psicólogo Pedro Paulo Bicalho, do Conselho Federal de Psicologia, fez um resgate histórico dos acontecimentos. No ano de 1998, foi denunciada a primeira clínica da “cura gay” no estado do Espírito Santo, obrigando o CFP a se posicionar sobre o assunto, culminando, assim, com a criação da Resolução 001/1999. Mesmo assim, em pesquisa realizada no ano de 2009, 70% das pessoas LGBTs entrevistadas responderam “sim” quando perguntadas se já foram encaminhadas alguma vez para “terapias” de reorientação sexual. Felizmente, a Resolução 001/99 tem sido utilizada no combate à LGBTfobia, não somente por psicólogas(os), mas também por diversos setores da sociedade, inclusive pelos Magistrados. E, talvez pela sua importância e alcance, tenha incomodado alguns setores mais conservadores que já tentaram cassá-la por cinco vezes.
Outra medida muito importante para o questionamento da “cura gay” é a Resolução CFP 001/2018 que – a exemplo da 001/99, que combate a discriminação de pessoas por sua orientação sexual – fala sobre as expressões/identidades de gênero e defende travestis e transexuais contra a transfobia e as tentativas de patologização. Depois das vitórias na defesa da Resolução 001/99 (algumas delas ainda em curso), outra estratégia tem sido utilizada por setores conservadores: a de usar a Egodistonia (o desconforto em ser homossexual) para justificar a violação de direitos. A esse tentativa, a Psicologia responde que não se combate a egodistonia com a heterossexualidade, mas sim com uma “egosintonia”, ou seja, as(os) psicólogas(os) devem colocar em análise os processos de violência que causam esse incômodo.
Para concluir a fala de Pedro Paulo, foi lembrada ainda que a prática dessas “terapias” de reorientação sexual, bem como outras práticas violadoras dos Direitos Humanos, vêm ocorrendo em Comunidades Terapêuticas com pessoas LGBTI, fato grave que já foi denunciado pelo CFP em relatório de 2011 e em novo Relatório Nacional de Inspeção em Comunidades Terapêuticas, lançado em 18 de junho desse ano.
A Defensoria Pública também esteve presente na mesa e alertou para o caráter conservador que quase sempre tem o Direito: um ordenamento que segue julgando em grande parte segundo concepções cis-hetero-normativas com vistas à manutenção do status quo. Citou alguns casos em que juízes(as) e promotora(s) se posicionaram – no julgamento de seus processos – de acordo com posições conservadoras de suas religiões pessoais. Como foi o caso de um promotor cujos argumentos para a não concessão de medida protetiva a uma mulher trans foi a de que “existe uma doutrina de ideologia de gênero que, se persistir, irá instaurar o caos”. Ou de famílias que internaram compulsoriamente pessoas trans, sem laudos e de forma ilegal.
Na mesa, houve representação dos movimentos sociais por Claudio Nascimento, que também denunciou vários casos de maus tratos que chegavam a seus serviços de acolhimento. Um desses casos era o de uma menina lésbica submetida pelos pais a três meses de cárcere privado seguido de pseudo tratamento psicoterapêutico. Seus pais eram dois médicos: um ginecologista e uma clínica geral.
Claudio Nascimento contou também do caso de um pastor que, aos 62 anos, e não aguentando mais a condição de ter que esconder sua homossexualidade, pediu ajuda ao movimento. Denunciou que muitas vezes, “pseudo-psicólogos” têm contribuído para a tortura de muitas pessoas LGBTI. Alertou a academia para a falta de mais pesquisas com enfoques na situação das pessoas LGBTI, e o Estado, para dar aos processos que tramitam com temáticas LGBTI a mesma importância que dão a outros processos, pois o que se constata são processos engavetados por anos. Concluiu a fala ressaltando que há uma onda conservadora tentando levar de volta o negro para a senzala, a mulher para a cozinha e as pessoas LGBTI para o armário, mas que não vão conseguir, porque não dá mais para aceitar isso.
A mesa de debates da parte da tarde teve início com o depoimento de Sergio Viula, um ex-pastor que, na década de 1990, foi um dos fundadores e trabalhou durante alguns anos em um movimento chamado MOSES (Movimento Pela Sexualidade Sadia), que tinha por objetivo a evangelização de pessoas LGBT com fins da “reorientação sexual” (“cura gay”). Em 2003, depois de experimentar em si mesmo a própria incoerência das teorias que pregava no MOSES, e depois de presenciar muitas afirmações perigosas sobre curas e libertações da homossexualidade, ele se ausenta do grupo. Além do MOSES (hoje inativo), citou também o grupo EXODUS, que tinha propósitos semelhantes e foi extinto em 2013. Alertou para muitas igrejas que hoje se dizem inclusivas, mas que continuam reproduzindo o discurso da culpa e do pecado nas pessoas LGBTI.
Em outro depoimento, José Barbosa Jr., hoje pastor em Belo Horizonte, relatou como criou o movimento “Jesus Cura a Homofobia” e como conseguiu a adesão de muitas pessoas à causa. Nos dias que se seguiram ao lançamento do movimento, na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, recebeu mais de 700 mensagens de pessoas LGBT evangélicas. Relatou que, dos seus colegas de igreja que se diziam “ex-gays”, todos voltaram a assumir sua homossexualidade. Chamou a atenção para uma nova forma de ler a Bíblia e que é preciso rever toda a teologia, só assim o discurso patriarcal e conservador será desmontado.
Em outra fala, Camila Mantovani, ativista evangélica e bissexual, contou sobre como, em seu caso, a tentativa de “cura gay” partiu de seus próprios pais, pastores especialistas em exorcismo. Ao relatar a seus pais seu envolvimento com outra menina, aos 15 anos, foi por várias vezes submetida tanto a sessões de exorcismo com seus pais quanto a sessões de psicoterapia (“cura gay”) com psicólogas cristãs. Alertou que, nesses atendimentos psicológicos, eram por vezes feitas orações e até exorcismos pela psicóloga. Mostrou ainda como todo esse “tratamento” lhe causou muito prejuízo, deixando-a com um grande sentimento de culpa, e obrigando-a a um isolamento social a ponto de tentar suicídio.
Divulgou ainda o Esperançar, um movimento evangélico progressista, e o Evangélicxs – Juntos pela Diversidade, uma plataforma de Direitos Humanos e Cristianismo, e lembrou às pessoas presentes que não há qualquer hipótese de revolução no Brasil sem que se leve em consideração a religião das pessoas, e que a academia e os movimentos sociais precisam compreender isso.
“É muito importante hoje que seja desfeita a crença de que toda religião é sinônimo de obscurantismo e ópio do povo. Há correntes progressistas dentro das igrejas e que fazem uma forma de autocrítica à própria hierarquia e dogmas da fé que professam”, é a fala potente de Murilo Araújo, gay e católico, Coordenador de Assessoria da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT. Ele alerta ainda que é ilusão achar que as pessoas vão separar sua vida civil de sua vida religiosa, e que a ideia de laicidade precisa levar isso em consideração.
O evento foi encerrado com um fórum de debates sobre as estratégias que serão iniciadas a partir das discussões feitas durante as mesas da manhã e da tarde.
Os debates tiveram transmissão on-line. clique abaixo a confira a íntegra das falas.