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Rolnik convida público a “caminhar” pelas “formações do inconsciente colonial no campo social”


Data de Publicação: 14 de dezembro de 2015


Encerrando o terceiro e último dia do X Seminário Regional de Psicologia e Direitos Humanos e IV Seminário de Psicologia e Políticas Públicas, a esperada conferência da psicanalista Suely Rolnik, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), versou sobre o que a palestrante chamou de “Micropolíticas do cuidado da saúde dita ‘mental’: sugestões para driblar o inconsciente colonial”.

Ao iniciar sua explanação, Rolnik apresentou duas citações que deram o tom do “território que moveria” nos minutos seguintes. A primeira foi escrita pelo filósofo, psicanalista e militante revolucionário francês Félix Guattari, em “O Capitalismo Mundial Integrado e a Revolução Molecular” (1981): “O capitalismo é mundial e integrado porque potencialmente colonizou o conjunto do planeta, porque atualmente vive em simbiose com países que historicamente pareciam ter escapado dele (os países do bloco soviético, a China) e porque tende a fazer com que nenhuma atividade humana, nenhum setor de produção fique de fora de seu controle”.

A segunda citação é do também filósofo francês Deleuze, parceiro de Guattari, de uma entrevista que ambos concederam em 1972: “Dirigimo-nos aos inconscientes que protestam. Procuramos aliados. Precisamos de aliados. E temos a impressão de que esses aliados já existem, de que não esperaram por nós, de que há muita gente que esta farta, que pensa, sente e trabalha em direções análogas: nada a ver com moda, mas com um ‘ar do tempo’ mais profundo, no qual se fazem investigações convergentes em domínios muito diversos”.

De forma didática, Rolnik explicou que o uso do termo “globalização” é “vago” e “mascara” um fenômeno “fundamentalmente econômico e mais especificamente capitalista” – daí o uso da expressão “capitalismo integrado” por Guattari. “E o que teriam a ver com o campo da saúde, o ‘capitalismo mundial integrado’ e ‘os inconscientes que protestam’?”, indagou a psicanalista. “Buscamos driblar o inconsciente colonial em nós mesmos e nos nossos entornos. Que protesto é esse que quer driblar o inconsciente colonial e o que isso tem a ver com saúde? Mais especificamente, o que isso tem a ver com a saúde que, não por acaso, chamamos de mental?”, continuou ela, numa sequência de perguntas retóricas.

Assim, sobre a plateia numerosa e interessada que ocupava o auditório da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), foi lançada uma série de questionamentos e conceitos que, ao longo de sua palestra, Rolnik foi respondendo e elucidando com fluidez. “A existência humana, e não só humana, é uma energia vital e, ao mesmo tempo, esta energia está formatada de certa maneira. Por exemplo, aqui são corpos vivos formatados nessa cartografia cultural de universidade, universidade pública do Brasil, Brasil de hoje, UERJ. Tudo o que atravessa e que dá a forminha desta sala e de cada um de vocês é a formatação da gente. Mas essas formas variam ao longo do tempo, e o modo como elas vão se construindo dependem muito de qual política do desejo, qual funcionamento da subjetividade predomina naquele contexto, naquele momento”, introduziu a psicanalista.

 

As formações do inconsciente no campo social

“As ações do desejo visam encontrar uma maneira de dizer os efeitos das forças do mundo no seu corpo. A experiência real, as experiências cotidianas, produzem efeitos no seu corpo, criam novas experiências, a experiência viva. A maneira como você vai conduzir essas experiências novas e trazê-las para a realidade, como vai conduzir a desestabilização que elas trazem, e que te obrigam a reencontrar equilíbrio, vai determinar o destino das formações do inconsciente no campo social. Ou seja, vai determinar o tipo de sociedade e a dinâmica subjetiva do desejo que rege essa sociedade. É o que eu chamo de micropolítica”, esclareceu Rolnik. Nesse sentido, o que interessa, segundo ela, é se pensar “como é essa dinâmica, o que está acontecendo com o nosso desejo e como é que a nossa subjetividade está funcionando” no contexto da crise pela qual o mundo está passando, com suas especificidades no Brasil.

Remontando ao período das colonizações, a psicanalista começou a abordar o conceito de “inconsciente colonial” como o “inconsciente das sociedades ocidentalizadas, das regiões que foram raptadas e colonizadas pela Europa Ocidental como parte da construção mesmo dessa cultura ocidental” – o que se situa “em um plano mais macropolítico da justiça social”, uma vez que envolve colonizados e também colonizadores. “Se a Europa Ocidental inventou essa maneira de ser, no século XV, e a impôs, através da colonização, às mil culturas na África e de povos indígenas no Brasil, então o inconsciente colonial tem a ver também com os colonizadores, funciona neles e funciona na gente. E, claro, num plano mais macropolítico da justiça social, tem uma luta de interesses aí, eles sendo dominadores e nós, os dominados. Mas do ponto de vista do modo de funcionamento do desejo, e da subjetividade e do pensamento, a gente estaria compartilhando esse jeito”.

Segundo Rolnik, o regime no qual vivemos hoje teve início quando Roma “cafetinou” o cristianismo e, assim, construiu seu império. Estaria nesse contexto a origem do que ela chama de “inconsciente colonial”, que teria começado “com o Império Romano ‘cafetinando’ toda a vida micropolítica e macropolítica do Oriente Médio” – intensificando-se quando a inquisição iniciada em Roma, já extremamente cruel, migra para a Península Ibérica, onde “a carnificina não tem mais limites”, nas palavras da psicanalista. E é nesse movimento de conquistas de outras regiões do planeta que se inicia o regime capitalista na economia.

Já no século XVIII, “o Iluminismo, na Filosofia, impõe, como se faz na universidade, separar completamente o pensamento desse saber, dessa experiência que o corpo faz dos efeitos do mundo nele. O modo como as forças vindas do mundo afetam o seu corpo, e produzem ‘afetos’, que são indicadores de uma experiência que te permite se situar no que está acontecendo”, aprofundou-se Rolnik.

“O primordial, para você se situar, é a verdade do real que está no seu corpo. Por exemplo, o estado que está promovendo nos nossos corpos essa guerra das ondas, essa manipulação de poder absoluta que a mídia está construindo para destruir os governos da América Latina, que eu não diria nem de esquerda, nem progressista, para não entrar em debates compridos. Governos que simplesmente, além da democracia política, do direito ao voto e tal, deram umas pitadas supersignificativas de democracia econômica e social, que é o que aconteceu aqui. Os 40 milhões que não tinham nada organizaram sua vida material e imaterialmente, inclusive saíram da humilhação. Que estados isso promove no nosso corpo?”, indagou. “O efeito disso no meu corpo é a minha bússola fundamental”, definiu ela.

“O Iluminismo instaura, no pensamento filosófico, uma cisão ainda mais consistente com essa experiência do mundo, desse saber do corpo”, disse a psicanalista, reiterando que não se referiria a tal conceito como “inconsciente” porque considera que este seja “pesado demais”, motivo pelo qual opta por chamá-lo de “saber do corpo, que é o saber dos afetos, desses efeitos do mundo no seu corpo, que não tem imagem nem palavra, mas é uma experiência completamente real, tão forte e real quanto as experiências que a gente tem já com as nossas representações”, reiterou. E no Iluminismo isso se consolida ainda mais.

“Esse regime, que se instaura mais fortemente a partir do século X, depois XIII, vai sofrendo mutações ao longo dos séculos, diferentes desdobramentos e formas, e, agora, nesse momento que estamos vivendo, mais ou menos na segunda metade dos anos 70 nos Estados Unidos, o regime capitalista industrial passou a ser financeirizado, e o Estado passou a ser neoliberal. Então, tivemos uma financeirização do capital e uma neoliberalização do Estado. E a cada etapa dessas, a cada momento desse, o modo de funcionamento dessa dinâmica específica que eu chamo de inconsciente colonial, que começa lá atrás, vai mudando. São novas maneiras de respirar, mas também novas maneiras de adoecer. São novos sintomas. Uma outra maneira de funcionar, mas também uma outra maneira de que a vida funcione”, explica.

A partir desta explanação sobre o que chama de inconsciente colonial, Rolnik direcionou sua abordagem para os efeitos patológicos que este produz e a política do desejo que o alimenta, bem como o princípio que orienta, por outro lado, as formas de resistência à sua dinâmica, isto é, de que maneira o inconsciente colonial pode ser “driblado, desprogramado, desfeito”. Nesta altura de sua fala, a psicanalista esclareceu que, embora sua intenção fosse a de “pensar desde a posição mais submetida do inconsciente colonial até a posição mais desviante” do mesmo, não há como classificar um sujeito como totalmente submetido ou totalmente desviante do inconsciente colonial, “porque cada um de nós, em cada contexto social, oscila em várias posições o tempo todo”.

Mas destacou que esse “combate, que consiste em se deslocar no inconsciente colonial” é absolutamente necessário e vai até o fim da vida. “Acredito também que diante dessa crise mundial que estamos vivendo não é só econômica, mas uma crise da própria política de produção do desejo. Não tem como você sair disso que está acontecendo somente lutando pelos direitos humanos e sendo de esquerda, que é o mínimo que a gente tem que ser”, afirmou. “Se não agirmos nesse outro terreno diante desta situação, a tendência é a repetição ipsis litteris, e não é nem porque são malvados, mas porque, embora você esteja lutando como um bom fulano de esquerda por uma justiça de direitos civis, você pode estar funcionando completamente dentro da mesma lógica do inconsciente colonial, então necessariamente se reconfigura de novo todas as patologias”, completou.

 

Caminhando com Lygia Clark pela superfície da Fita de Möebius

Reiterando que “ninguém é totalmente desviante nem totalmente submetido”, Rolnik, que também curadora e crítica de arte e cultura, optou por “fazer uma ficção dos dois extremos” para destrinchar os conceitos que trabalharia, propondo a se pensar o mundo a partir da obra da artista brasileira Lygia Clark (1920-1988), que, segundo ela, “conseguiu criar dispositivos muito poderosos para driblar o inconsciente colonial nas subjetividades de quem experimentava suas proposições artísticas”.

Criadora e realizadora do Arquivo para uma Obra-Acontecimento, projeto de ativação da memória corporal das proposições artísticas de Lygia Clark, Rolnik baseou a etapa de sua apresentação que se seguiu na obra “Caminhando”, convidando os ouvintes a “caminharem” com ela pela superfície da fita de Möbius – obtida a partir da colagem de uma das extremidades de uma fita de papel ao avesso da outra extremidade, representando um caminho infinito. “Não tem antes e depois, não tem em cima e embaixo, fim ou início. É uma outra concepção de tempo e espaço”, afirmou.

A experiência de Clark foi cortar a fita e, à medida em que a cortava longitudinalmente, perceber que o próprio ato de cortá-la já produzia uma transformação na superfície da fita e, ao mesmo tempo, produzia uma outra experiência de tempo e espaço” à artista, de acordo com Rolnik, que chamou de “devir” o tempo desta mutação. “Altera-se a forma como a pessoa apreende o tempo e o espaço. A obra de arte é isto, é este acontecimento”, definiu.

Ao explicar que o que Clark percebeu nesse processo era que o que ela estava buscando estava no próprio ato de cortar, a palestrante lançou luz a uma questão filosófica que consiste na importância de se percorrer o caminho independentemente de onde se vá chegar, a importância da pergunta, independentemente da resposta que se vá alcançar.

Após o longo trajeto conceitual percorrido no decurso de sua palestra, a psicanalista e especialista em arte retornou a algumas das questões lançadas ao início de sua explanação. “Se esse sistema que começa mais fortemente a partir do século XV, e se do ponto de vista micropolítico, que interessa a nós, psicólogos, que é o ponto de vista da política de funcionamento definida pelo que chamei de inconsciente colonial, que é essa absoluta dissociação dessa outra experiência do mundo, então a impossibilidade da subjetividade se situar por esses efeitos, quando ela está vivendo esse mal-estar e essa tensão desse paradoxo, entre essa experiência real e forte que está aí, que ele só se sufoca, não está cabendo ali. Aí a subjetividade não aguenta essa tensão e vai, ou psiquiatrizá-la, ou psicologizá-la”, explicou.

“Esse mal-estar e a impossibilidade de estar nele e a interpretação dele como doença ou enfermidade, primeiro e mais óbvio é que alimenta a indústria farmacêutica inteira, e a psiquiatria é absolutamente colaboradora para manter isso no cativeiro e interpretar como doença. Você ficou mais frágil, já é sinal de inferioridade. Ou você vai virar massa fascista, projetar isso no outro. Então isso é funcionamento do inconsciente colonial. Como a financeirização do capital é o novo regime capitalista e a neoliberalização do Estado, este inconsciente colonial, esta forma de funcionamento, está se espalhando pelo planeta inteiro. Então, se a gente pensa em termos de resistência política, e o termo importante deste simpósio é ‘direitos humanos e políticas públicas’, este é o lado macropolítico. Se a gente, enquanto psicólogos, não reconhece que tem que driblar completamente esse funcionamento do inconsciente colonial, a gente não consegue sair do lugar”, encerrou.

 

 

Dezembro de 2015