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Comissão Estadual da Verdade apresenta relatório final


Data de Publicação: 10 de janeiro de 2016


Criada com o objetivo de subsidiar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que apurou violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado entre 1946 a 1988, com ênfase no período pós-Golpe Militar de 1964, a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio) apresentou publicamente, no dia 14 de Dezembro, o relatório final de suas atividades, em solenidade no salão nobre da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio de Janeiro (OAB/RJ), no Centro do Rio.

A advogada Rosa Cardoso, presidente da CEV-Rio, abriu o evento com um breve discurso sobre o trabalho da Comissão, cuja versão final, documento de 456 páginas, foi entregue ao governo do estado no Dia dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, em cerimônia no Palácio Guanabara. “Este trabalho é nosso e, agora, muito mais nosso do que ‘nosso’ [da comissão que o produziu], na medida em que o terminamos e não existem mais aqueles mesmos responsáveis pelo trabalho. Ele foi feito com o apoio fundamental de vocês”, disse a presidente da Comissão.

O jornalista Álvaro Caldas comentou o processo de apuração da Comissão que integra. “Através do nosso trabalho, nós enfrentamos o passado e projetamos perspectivas para o futuro; trouxemos personagens que viveram e enfrentaram a Ditadura; cruzamos informações de depoimentos e pesquisas, arranjando as dimensões pessoal e coletiva da conjuntura. Foi um trabalho longo e difícil, às vezes impactante. Visitamos os principais locais de tortura do Rio de Janeiro”, introduziu, mencionando ainda as revelações para casos historicamente importantes, como a carta-bomba na OAB e o assassinato de Rubens Paiva.

Comissão Estadual da Verdade apresetna relatório final

O relatório

A opção pelo formato revista, segundo Caldas, visou facilitar o manuseio e leitura do relatório, cujo conteúdo divide-se em seis partes: a primeira, intitulada “A Comissão da Verdade do Rio”, trata da criação da CEV, a legislação que a criou e as principais atividades realizadas; a segunda parte, “O Golpe de 1964 e a Ditadura”, que contextualiza o golpe que instaurou a Ditadura, apontando a participação empresarial e destacando o papel fundamental da imprensa nesse processo; a terceira parte, “Violência e terror do Estado”, sobre as diversas violações de direitos humanos praticadas no período “contra militantes de esquerda e outros setores sociais, como trabalhadores urbanos e rurais, moradores de favelas, seguimento LGBT, negros e mulheres, todos vítimas” de atrocidades, afirmou o membro da CEV-Rio.

A quarta parte do relatório, “Estrutura do Estado Ditatorial”, aborda a estrutura montada pela Ditadura para perpetrar as violações de direitos humanos, identificando os vários centros de tortura do Rio de Janeiro, mapeados no relatório. “A parte V, ‘Autoria das graves violações de direitos humanos’, nomeia 181 agentes que, comprovadamente, eram responsáveis por instituições políticas ou pela execução das graves violações de direitos humanos no Estado do Rio”, disse Caldas.

Ao mencionar a sexta parte, intitulada “O que resta da Ditadura”, que abarca o legado do período e o trauma nas gerações que se seguiram, Caldas fez menção ao “Grupo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça”, representado na mesa pelo militante Leo Alves Vieira. Esta parte trata da “permanência das violações de direitos humanos no presente e a recomendação e políticas públicas para a não repetição dessas violências”, completou.

Um trabalho que requer continuidade Para a professora Leonilde Medeiros, membro da CEV-Rio e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), “uma das grandes novidades da CEV foi sua articulação com a FAPERJ [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro] para a criação de um edital de apoio à pesquisa”, o que permitiu a criação de uma equipe inteiramente dedicada à pesquisa. “Existe um mito de que as lutas camponesas se limitaram às ligas camponesas do Nordeste. O Rio de Janeiro foi um dos estados onde os conflitos por terra foram mais intensos no período pré-64, mas o registro disso é muito frágil”, disse a pesquisadora.

“O registro está em alguns documentos sindicais, no sindicalismo que pouco a pouco se recompôs a partir de 1968; da imprensa, mas, principalmente, nos testemunhos. Porque, se pegarmos os arquivos do ‘Brasil Nunca Mais’, nos arquivos de memórias reveladas, nós vamos encontrar apenas algumas referências a esses conflitos, alguns nomes, lideranças que foram presas. Mas, para além disso, houve uma repressão cotidiana e feroz sobre os trabalhadores que participaram dos conflitos. Então o edital da FAPERJ foi fundamental para que a gente pudesse ir a campo”, reiterou.

 

Os pesquisadores selecionaram e percorreram diversas áreas de conflito no campo para aprofundarem a pesquisa e realizaram mais de 80 entrevistas. “Foi um trabalho enorme para localizar pessoas que tinham participado de conflitos, grande parte já tinha morrido, até por questões de idade, e principalmente para trazer à tona uma memória muito dolorida. Então, nessas sucessivas viagens a campo, entrevistamos trabalhadores, alguns dos quais não eram lideranças mas viviam nas áreas de conflitos; algumas lideranças; padres, agentes da pastoral, advogados, que deram apoio aos conflitos”, contou Leonilde.

A repressão no campo no pós-Golpe de 1964, especialmente na Baixada Fluminense, nas áreas de Nova Iguaçu, Caxias, Magé, Cachoeiras de Macacu e Itaguaí, foi muito violenta, segundo a pesquisadora. “Há vários relatos diferentes casas invadidas, móveis revirados, colchões furados, em busca de armas. Entre os militares, havia crença de que a resistência desses camponeses era um terreno fértil para a transformação de uma luta de camponeses pobres por terras em focos guerrilheiros. Daí a natureza brutal da repressão que se abateu sobre essas regiões. Uma repressão que foi feita pelo Exército e também por instituições estatais voltadas a diminuir conflitos, a assentar camponeses”, disse ela, que apontou ainda a necessidade de que o trabalho da CEV-Rio se estenda.

“Produzir um material didático que divulgue essa história é um desafio fundamental que temos pela frente”, encerrou. “Para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça” Em uma fala breve, a jornalista e ex-presa política Vera Durão, membro da Comissão, destacou o contexto em que o relatório foi divulgado. “Ressalto a importância de o nosso relatório ter sido divulgado recentemente, no Dia dos Direitos Humanos, quando o país está vivendo um período de muita incerteza, intolerância e ódio. Uma coisa que me preocupa e preocupa a todos nós é essa ascensão de uma visão fascista pela direita que está aí, bastante assanhada”, analisou Vera, que também criticou a reprodução de violações de direitos humanos praticadas na Ditadura pela polícia hoje, mencionando que, entre as conclusões e recomendações do relatório, está a desmilitarização da polícia brasileira, que tem “todo um caldo de cultura da Ditadura”.

Tal herança do nefasto período se manifesta, no “que a gente presencia hoje, principalmente no Rio de Janeiro, essa matança de jovens negros, essa homofobia, essa intolerância com as mulheres”, disse a ex-presa política. “O que esse nosso Congresso está demonstrando, uma falta de amor ao país e à democracia, um Congresso que dá vergonha. Todo esse movimento pró-impeachment [da presidente Dilma Rousseff], que felizmente ontem teve provocações fracas nas ruas. Mas nós não podemos dormir sobre esses lombos, porque essas pessoas não vão descansar enquanto elas não tentarem o pior. Eu só espero que elas não consigam”, disse Vera, com pesar.

“Então, eu só queria que nós meditássemos um pouco sobre isso e nos debruçássemos sobre o nosso passado para que possamos preservar esta Democracia, que tanto sangue, suor e lágrimas nos custou”, completou. Militante do movimento Ocupa DOPS – Campanha Pela Transformação do Prédio do ex-DOPS/RJ em Espaço de Memória da Resistência, o psicólogo Tiago Régis fez, em sua fala, o que chamou de “conexão de lutas”, mencionando o Ato em Defesa da Reforma Psiquiátrica que ocorreu na tarde do mesmo dia, contra a indicação do médico psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho para a Coordenação Nacional da Saúde Mental do Ministério da Saúde.

Tiago comparou a “torturadores já conhecidos da Ditadura” o psiquiatra, que dirigiu por 10 anos a Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, manicômio fechado em 2012 por praticar graves violações de direitos humanos contra pacientes.

O psicólogo elogiou o trabalho desenvolvido pela Comissão ao longo de dois anos e oito meses, mas também teceu críticas. “Embora tenha avançado em alguns pontos, justamente esta temática da saúde mental, das violações ocorridas em instituições psiquiátricas na época da Ditadura, é uma lacuna no relatório final da CEV-Rio. É importante apontar isso, porque não sei se algo ainda pode ser feito até março”, destacou.

Embora a campanha Ocupa DOPS tenha dois anos de existência, a luta pela tomada do DOPS da Polícia Civil vem acontecendo há muitos anos, segundo o militante, que discorreu sobre atos realizados pelo movimento.

Para ele, fatos como a ausência do governador Luiz Fernando Pezão na entrega do relatório “mostram muito bem em que cenário conjuntural estamos quanto à agenda da memória, verdade e justiça no estado e no país”. “É diante desse estar de coisas que nós acreditamos que a transformação do prédio do ex-DOPS em um espaço de memória da resistência em direitos humanos é uma das pautas mais urgentes da agenda MVJ no estado. Não é mais importante, mas é uma das mais urgentes”, pontuou o militante.

Na sequência, falou Leo Alves Vieira, representante do Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, movimento social independente, autônomo e suprapartidário que, formado em 2014, reúne familiares de vítimas da Ditadura Militar.

“Nosso objetivo é a divulgação e apoio a projetos que contemplem a pauta MVJ, relacionada às violações de direitos humanos tanto no passado quanto no presente”, disse o militante, que introduziu a leitura de um poema que foi declamado por membros do grupo na plateia, fazendo referência aos mortos e desaparecidos da Ditadura e da democracia – como o pedreiro Amarildo de Souza, torturado e morto por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da grande favela da Rocinha.

Para Leo, além da “continuidade do trabalho das Comissões da Verdade no Brasil, nunca esquecendo das violações de direitos humanos do presente”, é necessário que “essas comissões realizem mais atos públicos, nos espaços públicos, nas ruas, nas praças”.

O deputado estadual Flavio Serafini (PSOL) também falou sobre a importância do trabalho da CEV-Rio e seus desafios. “A luta por memória, verdade e justiça é uma luta muito difícil no Brasil. A própria existência da Comissão Nacional da Verdade foi uma vitória difícil de ser conquistada e, se não fossem as diferentes ações da Corte Interamericana [de Direitos Humanos], muito provavelmente não teria ocorrido. Então, a permanência dessa luta, sua relevância e importância, se reforçam a cada dia, por diferentes razões, desde o descaso dos governantes diante das questões colocadas, até a permanência de políticas extremamente violentas por parte do Estado brasileiro”, disse Serafini.

Ele criticou o aumento dos casos de autos de resistência no Rio de Janeiro, citando casos recentes de assassinatos de jovens por policiais, e afirmou que um projeto de lei está sendo elaborado, com a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio (ALERJ), para dar prosseguimento ao que está colocado no relatório da Comissão Estadual da Verdade.

Representando o Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça, formado por ex-presos políticos, familiares e militantes de direitos humanos, Ana Bursztyn-Miranda falou sobre o fato de o grupo que integra ter acompanhado, colaborado e criticado o processo do trabalho da CEV-Rio. “A entrega pública do relatório final da CEV-Rio é uma etapa muito importante da nossa luta. Nós, no Coletivo RJ MVJ, lutamos muito por essa Comissão da Verdade do Rio”, introduziu.

“Mas a luta por MVJ não começou com a CEV-Rio. Não começou nem pode terminar com a CEV-Rio. Nós precisamos persistir, perseverar, continuar. É claro que sem o apoio de uma CEV, talvez fique mais difícil. Mas precisamos continuar porque, apesar dos nossos esforços, os principais arquivos das Forças Armadas ainda estão lacrados. Porque permanece o pacto de silêncio de torturadores e ocultadores de cadáveres. Porque só no estado do Rio de Janeiro, não foram esclarecidas as circunstâncias e os responsáveis pelos assassinatos e desaparecimentos forçados de cerca de 150 companheiros e companheiras da época da Ditadura. Infelizmente, por uma série de circunstâncias, a Comissão da Verdade pode esclarecer, mas poucos”, disse a ex-presa política.

“Enquanto não se fizer justiça neste país, a cultura de violência dos agentes do Estado continuará segregando e minando a nossa sociedade. Porque há um risco deste rastro de violência continuar abortando e matando os jovens negros e pobres deste país, de se alastrarem as torturas e desaparecimentos. Porque o futuro da tortura está intimamente ligado ao futuro dos torturadores”, afirmou ela, que criticou ainda “o silêncio perverso das Forças Armadas com relação à sua responsabilidade no Golpe Civil-Militar de 1964”. Para Ana, “os crimes de lesa-humanidade cometidos no passado se irradiam como chaga no presente”, uma vez que foi mantida “a política de impunidade que, associada à militarização das polícias e à ausência de agentes públicos com formação correta em direitos humanos, tem promovido o agravamento a violência” no Rio de Janeiro e em todo o país.

“Hoje é um dia de festa, mas também um dia de luto, principalmente de continuar a luta. A luta por reparação, por memória, verdade e justiça”, encerrou.

Janeiro de 2016



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