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Situação do Programa Rio Sem Homofobia provoca indignação entre profissionais, ativistas e usuários


Data de Publicação: 29 de fevereiro de 2016


Com atrasos nos pagamentos de funcionários acumulados por quatro meses e problemas de infraestrutura nos quatro centros de atendimento do estado, o programa já vinha passando por processo de sucateamento. Psicólogos, assistentes sociais e advogados foram comunicados de seu desligamento do programa sem nenhuma satisfação do Governo do Estado e foram pagos somente na semana passada. Usuários estão sem atendimento e sentindo-se vulneráveis.

Importante iniciativa no combate à homofobia e na promoção da cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT’s), o Programa Estadual Rio Sem Homofobia foi interrompido em janeiro, quando os psicólogos, assistentes sociais e advogados que atendiam diretamente os usuários nos quatro centros de cidadania do estado do Rio foram comunicados, sem qualquer formalidade ou aviso prévio, de seu desligamento do programa.

Seus salários, atrasados havia quatro meses, foram pagos somente na segunda-feira passada, 22/02. Antes disso, entretanto, foi necessária uma pressão intensa por parte de profissionais e instituições ligadas à causa LGBT, como a carta protocolada pelo Conselho Estadual dos Direitos da População LGBT do Rio de Janeiro (CELGBT) e dirigida ao governador Luiz Fernando Pezão, cobrando o pagamento dos salários dos funcionários e a manutenção do programa, segundo o presidente do CELGBT, Júlio Moreira, que classifica a situação como “insustentável”.

“A gente chegou a um estágio, no final do Governo Cabral, mas principalmente no Governo Pezão, com essa crise política e financeira, e isso vai impactando todas as políticas públicas que, dentro de um escopo de necessidades escalonadas no Estado, são consideradas como de menor importância, e a pauta de direitos humanos é uma delas”, critica Moreira.

“A crise que hoje abrange o programa é também abrange a Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, então não é só o programa que está sofrendo com isso. É a FIA [Fundação da Infância e da Adolescência], é a Superintendência das Mulheres, todos os serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência estão inoperantes”, completa o presidente do CELGBT.

Quando, em dezembro do ano passado, foi anunciada a nomeação do pastor Ezequiel Teixeira para a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), setores ligados aos direitos humanos manifestaram publicamente sua preocupação com relação ao destino de iniciativas voltadas à promoção de direitos de minorias, como o Programa Rio Sem Homofobia, responsabilidade da pasta que o pastor assumiu há quase dois meses.

Após dizer acreditar na chamada “cura gay”, em entrevista concedida ao jornal “O Globo” em 17 de fevereiro último, na qual comparou a homossexualidade a doenças como Aids e câncer, dizendo-se “fruto de um milagre de Deus”, Ezequiel Teixeira – que já havia feito declarações como essas em outras ocasiões, sem que, no entanto, isso evitasse sua nomeação para a SEASDH –, foi exonerado do cargo na noite do mesmo dia em que foram publicadas suas declarações homofóbicas, sendo substituído pelo deputado Paulo Melo (PMDB).

Profissionais que atuavam no programa, entretanto, afirmam que este já vinha sofrendo com o descaso do Governo do Estado muito antes de o pastor assumir a SEASDH, e os atrasos nos pagamentos dos funcionários começaram em janeiro de 2015, tornando-se sistemáticos desde então – muitas vezes acumulando-se por meses, sem que o Governo lhes prestasse satisfações.

“Nunca houve transparência, nunca houve uma comunicação oficial do que estava acontecendo. Os atrasos apenas aconteciam e ninguém nos explicava nada. Então essa precarização e essa fragilidade já era um fato há muito tempo. Ter um pastor como secretário é chegar ao fim de uma história de grande fragilidade desse governo”, avalia o psicólogo Darío Adolfo Cordova (CRP 05/15372), que atendia no Centro de Cidadania da Capital desde 2011.

Para ele, o fato de um pastor evangélico assumir uma pasta ligada aos direitos humanos é uma consequência da falência de sua gestão, e não simplesmente sua causa. “Muito emblemático terminar o programa com um pastor. O reforço de uma agenda muito conservadora que, um pastor na assistência, veio só a dar o tiro de graça. Na verdade, o programa morreu por inanição”, diz Cordova.

A precariedade do programa começa na relação dos gestores com os funcionários dos centros de cidadania, que, segundo Darío, eram “praticamente prestadores de serviço”, uma vez que nunca assinaram um contrato de trabalho. “Não tínhamos férias, não recebíamos vale-transporte, tíquete-alimentação, benefício nenhum”, conta. “A relação com a gestão de programas sempre foi precária e muito problemática, porque não havia realmente uma preocupação com os centros de cidadania, parte do programa na qual estavam as equipes responsáveis pelo atendimento direto à população. Então estávamos todos os dias trabalhando em plantões pelos quais não recebíamos, e o serviço nunca parou”, completa.

O relato da psicóloga Carolina Motta Cardoso Salles (CRP 05/43388), que atendia no Centro de Cidadania LGBT Leste, em Niterói, também explicita o descaso do governo com os locais de atendimento aos usuários. “Nunca tivemos uma infraestrutura muito boa. Sempre faltou cartucho, papel, material. Teve uma época em que a gente ficou sem água, e aí ficou realmente inviável trabalhar. Já teve situações em que a gente teve que interromper o atendimento porque não tinha água, nem no banheiro nem para beber. A infraestrutura, acho que não piorou tanto [no último ano], porque já era muito ruim”, conta.

O psicólogo Acyr Maya, que atendia no Centro de Cidadania da Capital, destaca o pioneirismo e a “importância histórica” do programa. “Muito triste isso tudo”, lamenta. “A gente sabe do preconceito que existe em outros serviços, por parte de alguns profissionais, então a população LGBT não é recebida e, quando é recebida, de um modo geral, sofre preconceito devido à orientação sexual, à identidade de gênero. As equipes, de um modo geral, não estão preparadas para atender essas pessoas, por conta do preconceito. Então o RSH veio ocupar um espaço importante nesse sentido, veio ao encontro da promoção de cidadania dessa população”, ressalta.

Segundo Maya, o trabalho desenvolvido pelo Rio Sem Homofobia era “de promoção da cidadania num sentido mais amplo” e não se restringia ao atendimento. “Nosso trabalho não se resumia a atender essa população, mas também a fazer contatos, intervenções junto a escolas, a empresas, quando se fazia necessário para esclarecer a orientação sexual e identidade de gênero, a gente fazia palestras, conversava com os empregadores, com professoras nas escolas, justamente para facilitar a permanência ou ingresso da população LGBT nas instituições de ensino, nos locais de trabalho”, conta.

Além do Disque Cidadania LGBT, canal telefônico de atendimento à população LGBT, responsável também pelo recebimento de denúncias de vítimas de homofobia, o programa abrange quatro Centros de Cidadania LGBT, sendo um na Capital, localizado no Centro do Rio; o da região Leste do Estado, sediado em Niterói; o da Região Serrana, com sede em Nova Friburgo, e o da Baixada, localizado em Duque de Caxias. Nesses espaços, a população LGBT recebia assistência social, jurídica e psicológica, até o programa ser interrompido. Para o psicólogo Alexandre Nabor França (CRP 05/32345), conselheiro do CRP-RJ e ativista da causa LGBT, o destino dos prontuários dos pacientes do Programa Rio Sem Homofobia é outra preocupação a ser discutida.

“O psicólogo é responsável pelos prontuários dos pacientes, isso está no código de ética do profissional de psicologia. Se o programa termina, como fica o psicólogo que acompanhou aquele usuário, que tem seu prontuário? Para onde vai esse prontuário?”, questiona. Segundo França, o CRP-RJ tem acompanhado e acolhido os profissionais do programa, além de integrar, ao lado de outras importantes instituições, a Frente Ampla de Enfrentamento da Precarização da Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, que vem atuando na luta contra a extinção do Rio Sem Homofobia e em defesa de outros projetos voltados ao combate do preconceito de gênero, raça e intolerância religiosa.

O psicólogo destaca ainda o fato de o Brasil ser um dos países com os mais elevados índices de homofobia no mundo e de a cidade do Rio de Janeiro atrair um grande número de turistas LGBT. “Trata-se de um trabalho fundamental no combate da homofobia em todas as suas expressões, e que teve um grande êxito, porque trouxe realmente uma redução da violência contra a população LGBT no estado”, afirma o psicólogo, para quem a situação se agrava ainda mais com a aproximação dos Jogos Olímpicos que o Rio sediará em agosto.

“É um grande retrocesso, ainda mais num período de megaeventos no país. Acredito que os usuários ficarão muito mais vulneráveis ainda, sem tratamento, sem o amparo que o programa dá. As pessoas que sofrerem violências não terão espaços de acolhimento”, lamenta França, que também integra a Comissão de Direitos Humanos do CRP-RJ. No dia 22 de fevereiro, em reunião da Frente Ampla do Rio de Janeiro pelos Direitos Humanos, na sede da OAB/RJ, na qual estiveram presentes importantes lideranças do movimento LGBT, o Coordenador do Programa Estadual Rio Sem Homofobia, Claudio Nascimento, anunciou que o programa teria continuidade, mas as verbas a ele destinadas sofreriam um corte de mais de 50%. A reportagem do CRP-RJ entrou em contato com a assessoria da SEASDH, mas não obteve retorno para os pedidos de entrevista com representantes da Secretaria.

Para França, se antes de ser anunciado o corte o programa já se encontrava em condições extremamente precárias, sem verba é que não terá condições de seguir adiante. A situação preocupa o movimento LGBT, os funcionários do programa e seus usuários, que seguem sem atendimento e sentindo-se desamparados. “Dependemos muito desses serviços”, afirma usuário do Rio Sem Homofobia O jovem Breno Ferreira Nunes dos Santos, de 25 anos, frequenta o Centro de Cidadania LGBT de Niterói há cerca de um ano e meio.

“O pessoal de lá me ajudou bastante na minha caminhada, para eu saber onde buscar tratamento, como alcançar o tratamento trans, e até mesmo conselhos, palestras, diversas outras coisas que eles sempre estavam indicando, auxiliando a gente. Acho que se não fosse a existência desse programa eu estaria bem perdido. De repente eu não estaria nem mais aqui”, conta. Ele frequenta reuniões que, no início, contavam com apenas quatro ou cinco pessoas – número que foi crescendo gradativamente, e hoje “a sala fica abarrotada de gente”, segundo Breno.

“O programa é indispensável, porque muita gente precisa do apoio psicológico, o de uma assistência social e o de uma advogada, precisa de apoio quando as coisas apertam, e não tem a quem recorrer. Então os centros de cidadania serviam para isso, pra gente buscar mesmo a ajuda que não tem em nenhum outro local”, diz. Quem avisou Breno, e também os outros usuários, de que o Rio Sem Homofobia corria o risco de ser extinto, foram as profissionais do Centro de Cidadania.

“Eu já tinha uma sensação de que, em algum momento, alguém fosse tentar parar o programa, porque, infelizmente, o meio LGBT é sempre aquele que pode ficar por último, sempre o último da fila a ser visto como algo importante”, questiona. “Todo mundo se sentiu atingido pelo fim do programa, por essa ameaça de não ter mais o Centro de Cidadania em Niterói, porque dependemos muito desses serviços”, encerra o jovem. Juan Barcelos Gomes, de 45 anos, começou a frequentar o Centro de Cidadania de Niterói no ano passado e conta que foi lá que recebeu “amparo, condições e força” para lidar com a transexualidade. “É muito difícil. Tem gente que diz coisas como ‘isso é uma pouca vergonha’. E na verdade é uma decisão corajosa, porque a pessoa ela nada de encontro a uma sociedade que quer formatar, que não entende a diversidade ainda, infelizmente. Não é nada fácil [assumir-se]”, afirma.

Desde 2003, Juan vive com sua esposa – primeiro, o casal assinou união estável e, mais adiante, “com orientação dos advogados do Centro”, realizou o casamento civil. “E depois teve o casamento coletivo, na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, onde eu e minha esposa pudemos ter mais segurança e fomos reconhecidos, com documentos e tudo”, conta ele, que está em processo de preparação para a mastectomia (cirurgia para retirada dos seios).

“A mastectomia é fundamental para que a pessoa se sinta como ela deseja se sentir realmente”, explica. Para Juan, o programa Rio Sem Homofobia foi muito mais do que o apoio de que precisava para se assumir como trans. “O Centro é fundamental para mim. Me ajudou muito no processo, enquanto eu me reconheci e me assumi como trans homem, e também estão sendo fundamentais as amizades e todo o conhecimento adquirido, a troca de experiências, o sofrimento, as alegrias, as dificuldades. Não é só um grupo para falar coisas bobas, bobagens. Como a gente é marginalizado, às vezes pode se pensar que é um grupo para falar asneiras. De forma nenhuma. É fundamental para o bem-estar, de modo geral, de todos os seres humanos que vão ali buscando apoio, ajuda, compreensão. É muito mais que uma questão burocrática, muito mais que isso”, enfatiza.

Fevereiro de 2016